se você pensar bem, sempre houve momentos em que no fundo você sabia serem importantes. aquele instante, pequeno, que a maioria dos humanos permite passar, um rosto pelo qual se tem certeza que os calcanhares devem dar meia volta e seguir mas que, mesmo a certeza estando presente, a inércia é mais forte e continuamos (ou continua-se) a andar. sendo ele humano, ele também sentiu esse momento, não foi por um rosto - agora não é a hora apropriada para romantismos rasgados. sentiu e, a despeito de sua humanidade, parou e voltou, sinceramente acho que estatisticamente, apenas por esse ato, ele deve estar num grupo de um centésimo por milhões. ele parou para um gato, preto, não sejam supersticiosos ainda. o bichano o olhou como se olhasse uma antiga refeição, um tanto de superioridade e de familiaridade, ele olhou o bichano como se olhasse um antigo amigo. as amizades de Carlos são assim, há sempre uma hierarquia inflexível. melhor para os amigos. carlos, esteja claro, é o nome do gato, não ainda, mas depois que José o levar para casa. José é o bípede. mundo estranho esse em que quadrúpedes estão sujeitos a conviverem com bípedes por causa de alimento, víveres, para ser exato, isso teria sido o que Carlos teria pensado se gato não fosse, mas dizemos nós por ele. para que não tenhamos de dizer sempre por outros, mudemos o foco da história.
José nunca teve um animal, nenhum nunca o tinham atraído, mentira, de José, ao narrador cabe apenas a verdade, José nunca tinha sequer pensado em animais. mas aquele gato não foi uma questão de pensamentos, eles simplesmente se acharam. José se achava tão ligado àquele gato que pareciam terem se conhecido quando ambos eram filhotes, e Carlos estava no apartamento havia poucas horas, comido o suficiente por dias, bem verdade, mas as horas do relógios são objetivas, independente das fomes, que são, para homens e gatos, várias. Voltemos ao afeto que serão eles a dar aos ouvintes, a José e a Carlos a história. Carlos não pensava nada, José era só alegria, tinha uma companhia, pensou em locar alguns vídeos para assistir com o novo amigo. fazia tempo que o tocador de dvd não era ligado, visitas não são muito frequentes aqui. música também não era, mas veja que alegria um bichano traz a um lar, faz algumas horas, mais horas do que fazia antes, que ouves-se claramente sons ritmados e melodias variadas que vêm desse apartamento. os vizinhos, sempre chatos, reclamam, Mas que porra, onde já se viu música a uma hora dessa, Você está doido seu viado, não se sabe se isso foi uma pergunta ou uma afirmação, José não se importou, não nos importemos também. o que importa é que o vídeo foi locado e estão, José e Carlos, a assistir a ele. nunca se verá cena tão linda, lado a lado, ao menos um deles está olhando para a tela. então o bandido morre no final. uma cena comum em filmes comuns. isso nunca aconteceria na realidade, o cara descarregou um pente de fuzil e não acertou um tiro, diz José, Não sei, a realidade pode ser bem estranha, responde Carlos.
essa crônica foi para pagar uma dívida e obedecer uma ordem.